Da necessidade de um pensamento complexo – Edgar Morin
(resumo)
trad. Juremir M. da Silva
"Não
posso conhecer o todo se não conhecer particularmente as partes, e
não posso conhecer as partes se não conhecer o todo"
– Pascal.
Vivemos
numa realidade multidimensional simultaneamente psicológica,
mitológica, sociológica, econômica, mas estudamos estas dimensões
separadamente, e não umas em relação com as outras. O princípio
da separação torna-nos talvez mais lúcidos sobre uma pequena parte
separada do seu contexto, mas nos torna cegos ou míopes sobre a
relação entre a parte e o seu contexto.
Durante
muito tempo, a ciência ocidental foi reducionista. Tal conhecimento
ignora o fenômeno mais importante, que podemos qualificar de
sistêmico, da palavra sistema, conjunto organizado de partes
diferentes, produtor de qualidades que não existiriam se as partes
estivessem isoladas umas as outras.
Penso
que o pensamento complexo deve ligar a autonomia e a dependência.
Para ser autônomo, tenho de depender do meio exterior (alimento,
abrigo, etc); para ser um espírito autônomo, tenho de depender da
cultura de que alimento os meus conhecimentos.
A
nossa educação nos habituou a uma concepção linear da
causalidade. Passamos de uma visão linear a uma visão circular.
Em que consiste esta circularidade? Consiste no fato de produtos e
efeitos serem necessários tanto ao produto como à causa. Como
exemplo, a vida é um sistema de reprodução que produz os
indivíduos. Somos produtos da reprodução dos nossos pais. Mas,
para que este processo de reprodução continue, é necessário que
nós próprios nos tomemos produtores e reprodutores de nossos
filhos. Somos, portanto, produtos e produtores no processo da vida,
isto é o princípio da causalidade retroativa.
Produzimos
a sociedade que nos produz. Ao mesmo tempo, não devemos esquecer que
somos não só uma pequena parte de um todo, o todo social, mas que
esse todo está no interior de nós próprios, ou seja, temos as
regras sociais, a linguagem social, a cultura e normas sociais em
nosso interior. Segundo este princípio, não só a parte está no
todo como o todo está na parte.
O
tesouro da humanidade é a sua diversidade. Esta não só é
compatível com a unidade fundamental, mas produzida pelas
possibilidades do ser humano.
Não
devemos esquecer que somos seres trinitários, ou seja, somos
triplos em um só. Somos indivíduos, membros de uma espécie
biológica chamada Homo Sapiens, e somos, ao mesmo tempo, seres
sociais.
É
difícil fazer compreender que o "um" pode ser "múltiplo",
e que o "múltiplo" é suscetível de unidade.
Compreender
a unidade e a diversidade é muito importante hoje, visto
estarmos num processo de mundialização que leva a reconhecer a
unidade dos problemas para todos os seres humanos onde quer que
estejam; ao mesmo tempo, é preciso preservar a riqueza da
humanidade, ou seja, a diversidade cultural; vemos, por exemplo, que
as diversidades não são só as das nações, mas estão também no
interior destas; cada província, cada região, tem a sua
singularidade cultural, a qual deve guardar ciosamente.
Damos
vida às nossas ideias e, uma vez que lhes damos vida, são elas que
indicam o nosso comportamento. Devemos considerar a história
humana de maneira complexa. E levar-nos a
compreender a incerteza do nosso tempo, visto que não há
progresso necessário e inelutável; sabemos que todos os progressos
adquiridos podem ser destruídos pelos nossos inimigos mais
implacáveis: nós mesmos, dado que hoje a humanidade
é a maior inimiga da humanidade. Sabemos, atualmente, que o
progresso deve ser regenerado; sabemos ainda que a barbárie
constitui uma ameaça, e vivemos mais do que nunca na incerteza,
porque ninguém pode adivinhar o que será o dia de amanhã. O nosso
destino é, pois, incerto, e ninguém sabe qual o destino do Cosmos.
A
nossa situação é extremamente complexa, porque somos,
integralmente, filhos do Cosmos e estranhos a esse mesmo Cosmos.
O
pensamento complexo conduz-nos a uma série de problemas fundamentais
do destino humano, que depende, sobretudo, da nossa capacidade de
compreender os nossos problemas essenciais, contextualizando-os,
globalizando-os, interligando-os: e da nossa capacidade de enfrentar
a incerteza e de encontrar os meios que nos permitam navegar num
futuro incerto, erguendo ao alto a nossa coragem e a nossa esperança.
A
especialização abstrai, extrai um objeto de seu contexto e
de seu conjunto, rejeita os laços e a intercomunicação do objeto
com o seu meio, insere-o no compartimento da disciplina, cujas
fronteiras quebram arbitrariamente a sistematicidade (a relação de
uma parte com o todo) e a multidimensionalidade dos fenômenos, e
conduz à abstração matemática, a qual opera uma cisão com o
concreto, privilegiando tudo aquilo que é calculável e
formalizável.
Eis
o problema universal para todo cidadão: como adquirir a
possibilidade de articular e organizar as informações
sobre o mundo. Em verdade, para articulá-las e organizá-las,
necessita-se de uma reforma de pensamento.
O
objetivo do pensamento complexo é ao mesmo tempo unir
(contextualizar e globalizar) e aceitar o desafio da incerteza.
Princípios
do pensamento complexo:
1-
Princípio sistêmico ou organizacional: liga o conhecimento
das partes ao conhecimento do todo, conforme a ponte indicada por
Pascal.
2-
Princípio
"hologramático"
: coloca em evidência
o aparente
paradoxo dos sistemas complexos, onde não somente a
parte está
no todo, mas o todo se inscreve na parte.
3-
Princípio do anel retroativo: permite o conhecimento dos
processos de autorregulação. Rompe
com o princípio de causalidade
linear: a causa age sobre o efeito, e
este sobre a causa.
4-
Princípio do anel recursivo: supera a noção de regulação
com a de autoprodução e auto-organização. É um anel gerador, no
qual
os produtos e os efeitos são produtores e causadores do que os
produz.
5-
Princípio de auto-eco-organização (autonomia/dependência):
os seres vivos são auto-organizadores que se autoproduzem
incessantemente, e através disso despendem energia para
salva-
guardar a própria autonomia. Como têm necessidade de
extrair
energia, informação e organização no próprio meio
ambiente, a
autonomia deles é inseparável dessa dependência, e
torna-se imperativo concebê-los como auto-eco-organizadores.
6-
Princípio dialógico: Une dois princípios antagônicos que,
devendo excluir
um ao outro, são indissociáveis numa mesma
realidade. Deve-se conceber uma dialógica
ordem/desordem/organização
desde o nascimento do universo. A
dialógica permite assumir racionalmente a associação de noções
contraditórias para conceber um mesmo fenômeno complexo.
7-
Princípio da reintrodução: esse princípio opera a
restauração do sujeito e ilumina a problemática cognitiva central;
da percepção à teoria científica, todo conhecimento é uma
reconstrução/tradução por um
espírito/cérebro numa certa
cultura e num determinado tempo.
Eis
alguns dos princípios que guiam os procedimentos cognitivos do
pensamento
complexo. Não se trata, de um pensamento que expulsa a
certeza com a incerteza, a separação com a inseparabilidade, a
lógica para
autorizar-se todas as transgressões. Consiste, ao
contrário, num ir e
vir constantes entre certezas e incertezas,
entre o elementar e o global, entre o
separável e o inseparável.
Ela utiliza a lógica clássica e os princípios de
identidade, de
não-contradição, de dedução, de indução, mas conhece-lhes os
limites e sabe que, em certos casos, deve-se transgredi-los. Não se
trata portanto
de abandonar os princípios de ordem, de
separabilidade e de lógica - mas de
integrá-los numa concepção
mais rica. Não se trata de opor um holismo global
vazio ao
reducionismo mutilante. Trata-se de repor as partes na totalidade,
de
articular os princípios de ordem e de desordem, de separação e
de união, de autonomia e de dependência, em dialógica
(complementares, concorrentes e
antagônicos) no universo.
O
paradigma da complexidade une enquanto distingue.
O
pensamento complexo é, portanto, essencialmente aquele que trata com
a
incerteza e consegue conceber a organização. Apto a unir,
contratualizar,
globalizar, mas ao mesmo tempo a reconhecer o
singular, o individual e o
concreto.
Por
toda parte, se reconhece a necessidade de interdisciplinaridade,
esperando o reconhecimento da relevância da transdisciplinaridade,
seja para o estudo da
saúde, da velhice, da juventude, das
cidades... mas a transdisciplinaridade só é
uma solução no caso
de uma reforma do pensamento. É preciso substituir um
pensamento que separa por um pensamento que une, e essa ligação
exige a
substituição da causalidade uni linear e unidimensional
por uma causalidade em
círculo e multirreferencial, assim como a
troca da rigidez da lógica clássica por
uma dialógica capaz de
conceber noções ao mesmo tempo complementares e antagônicas;
que o conhecimento da integração das partes num todo seja
completada pelo reconhecimento da integração do todo no interior
das partes.
A
reforma do pensamento permitirá frear a regressão democrática que
suscita,
em todos os campos da política, a expansão da autoridade
dos experts,
especialistas de todos os tipos, estreitando
progressivamente a competência dos
cidadãos, condenados à
aceitação ignorante das decisões dos pretensos
conhecedores, mas
de fato praticantes de uma inteligência cega, posto que parcelar e
abstrata, evitando a global idade e a contextualização dos
problemas. O desenvolvimento
de
uma
democracia
cognitiva
só
é
possível
numa
reorganização do saber, a qual reclama
uma reforma do pensamento capaz de
permitir não somente a separação
para conhecer,mas a ligação do que está
separado.
Toda
reforma desse tipo suscita um paradoxo: não se pode reformar as
instituições sem a reforma anterior das mentes; mas não é
possível reformar as mentes sem antes reformar as instituições.
Eis
uma impossibilidade lógica, mas é justamente desse tipo de
impossibilidade
lógica que a vida zomba
Um comentário:
De que ano é esse texto?
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