terça-feira, 25 de agosto de 2020

Beleza


"Quem ouve a música ‘Vingança’, de Francisco Mattoso e José Maria de Abreu (interpretada no final dessa postagem pela minha tia famosa, por ocasião da entrevista que deu ao jornalista Aramis Millarch nos anos 90), deve conseguir com um pequeno esforço, se fechar os olhos, imaginar a figura da mulher que por pouco não desfaleceu nas mãos do homem que a amava e sentia-se por ela friamente traído. É a última estrofe da canção e a mulher que era alvo de ódio e rancor, surge como a imagem encarnada da redenção. A beleza arranca, sem aviso e sem piedade, em um único e certeiro solavanco, a mesquinhez de um homem amargurado, elevando-o à imagem e semelhança do criador que derrama perdão e graça generosamente, e sem poder evitar, ao mais infame dos traidores.

Em uma noite gelada, entre papelões e cachimbos feitos em latas vazias, debaixo de uma marquise da rua XV, Cléverson cobre Iracema com seu único cobertor, delicadamente, para não acordá-la. E abraça os próprios joelhos, tremendo de frio, sem tirar os olhos de Iracema, que conheceu na rua e aninhou em seus braços. A mulher tem apenas quatro dentes e é mais magra do que parece ser possível. Cléverson também é magríssimo, mas tem o dobro do peso de Iracema. E o dobro dos dentes. Ela percebe o cobertor e estende a mão sem abrir os olhos, puxando seu homem para perto de si, com um sorriso discreto, para aquecê-lo com seu corpo esquelético.

Em uma ensolarada tarde de sábado, num parquinho no centro da cidade, Lúcia e Pedro embalam com cuidado no balanço o pequeno Igor, portador de síndrome desconhecida. Seus olhos são enormes e completamente desalinhados, assim como as orelhas. A cabeça é muito maior que o normal, e os pais precisam sustentá-la com cuidado enquanto balançam o menino, que abre o maior sorriso de sua vida quando sente o vento acariciar seu rosto. Os pais não controlam o riso e logo os três juntos gargalham como nunca haviam gargalhado, por longos minutos, e seguem rindo e gargalhando, de brinquedo em brinquedo, por toda tarde.

Mara é cega, mas sempre que senta no banco de madeira virado para o mar no fim da tarde, e ouve o canto das gaivotas e as risadas dos meninos correndo na areia, e o farfalhar das folhas da árvore que a sombreia, sabe que está diante de uma paisagem assombrosamente encantadora, e chora de alegria pelo privilégio de sentar ali e sentir na pele e nos ouvidos a imensidão da beleza do entardecer.

Cada um tem motivos de sobra para lambuzar-se no visgo amargo do rancor. Mas diante de cada um, diariamente, espetáculos gratuitos de beleza e graça se derramam generosamente. Felizes os puros de coração, porque verão a beleza em qualquer canto, e por ela serão redimidos. Um dia de cada vez."

Tuco Egg, trecho de texto em seu blogue "A Trilha", em breve em forma de livro.

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