"Era 1974. Completara os esperados dezoito anos no ano anterior, mas só poderia votar agora porque aniversariava em dezembro. Estava ansioso. Tinha carteira de identidade, certificado de reservista e agora também título de eleitor. Iria votar.
Alinhou-se na fila, adentrou a sessão de votação e votou. Saiu rápido e voltou à pé para casa. Multidões faziam uma algazarra nas esquinas. Emporcalhavam a cidade com papéis.
Nos anos seguintes absteu-se de votar. Era a sua forma de protestar. Dizia que não concordava com nada daquilo. Em algumas eleições nem foi ao local de justificativa. Tempos depois arrependeria-se pelo transtorno, a multa ridícula, a aporrinhação. Mas naquele momento estava orgulhoso de sua atitude. Era marrento, autosuficiente, teimoso como todo capricorniano. Empurrava os muros com o peito e com a cabeça.
Os anos passaram rápidos, a cabeça branqeuou. A política não mudou. Saiu o Presidente da República que usara a vassoura para limpar a corrupção. Saiu pelas portas do fundo, alcoólatra populista, fujão. Entregou o país para a bandalha. Vieram militares quebrando as espinhas na porrada. Prendo e arrebento, prefiro o cheiro de cavalos, dizia um bronco. Antes houvera um marechal iletrado sentado na cadeira do Poder. Coisas do Brasil. Ame-o ou deixe-o. Eu te amo meu Brasil. País do futuro. O Gigante adormeceu.
Um dia o coração do jovem incendiou-se. Na Praça da Sé ajuntavam-se todos. Gritavam por Diretas-Já! A esperança vencera o medo, diziam. Ele não acreditou. Tomava uma cerveja gelada com o melhor amigo e deixava prá lá. Nunca comera pelas mãos dos outros, não seria agora.
Outros vieram. Teve um que era “caçador de marajás”. Durou pouco e saiu esbravejando, jurando inocência. O crápula ainda vive, pois coronel do sertão tem vida longa. Ainda elegeu-se senador depois de tudo. O povo não tem memória. O mesmo presidente-fujão, aquele que usava vassoura, que renunciou, que saíra pelas portas dos fundos, ainda elegeu-se prefeito da maior cidade do país. Pode isso?
Ontem o menino de cabelos brancos olhava indiferente a tela da televisão. Anunciavam os resultados das eleições. Incrédulo, virou-se para o lado e adormeceu. Sonhava que vivia num país em que ex-presidentes corruptos, aprendizes de ditadores eram enforcados em praça pública. Sonhava que um gigante despertava e que ao caminhar com seus pés assustadoramente grandes, tudo ia desfazendo-se, esfarelando, virando pó.
O menino de cabelos brancos acordou empapado de suor. A perna doía pela posição incômoda em que adormecera. Ao seu lado a esposa dormitava. Estava cansada, ressonava. Perdeu mais cinco minutos revirando-se na cama. Logo levantou-se.
Lá fora o sol prenunciava um dia tórrido. Ligou a televisão. Falavam do resultado das eleições. Desligou o aparelho e foi fazer o café."
(Meu amigo Valter Ferraz, no FaceBook de hoje)
Um comentário:
Rubinho, agradeço o compartilhamento do texto.
Deixo aqui minha admiração pela persistência em continuar com o Blog.
Abraço Forte
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