quarta-feira, 28 de maio de 2014

Da Necessidade de um Pensamento Complexo (resumo) - Edgar Morin

Da necessidade de um pensamento complexo – Edgar Morin (resumo)
trad. Juremir M. da Silva


"Não posso conhecer o todo se não conhecer particularmente as partes, e não posso conhecer as partes se não conhecer o todo" – Pascal.

Vivemos numa realidade multidimensional simultaneamente psicológica, mitológica, sociológica, econômica, mas estudamos estas dimensões separadamente, e não umas em relação com as outras. O princípio da separação torna-nos talvez mais lúcidos sobre uma pequena parte separada do seu contexto, mas nos torna cegos ou míopes sobre a relação entre a parte e o seu contexto.
Durante muito tempo, a ciência ocidental foi reducionista. Tal conhecimento ignora o fenômeno mais importante, que podemos qualificar de sistêmico, da palavra sistema, conjunto organizado de partes diferentes, produtor de qualidades que não existiriam se as partes estivessem isoladas umas as outras.
Penso que o pensamento complexo deve ligar a autonomia e a dependência. Para ser autônomo, tenho de depender do meio exterior (alimento, abrigo, etc); para ser um espírito autônomo, tenho de depender da cultura de que alimento os meus conhecimentos.
A nossa educação nos habituou a uma concepção linear da causalidade. Passamos de uma visão linear a uma visão circular. Em que consiste esta circularidade? Consiste no fato de produtos e efeitos serem necessários tanto ao produto como à causa. Como exemplo, a vida é um sistema de reprodução que produz os indivíduos. Somos produtos da reprodução dos nossos pais. Mas, para que este processo de reprodução continue, é necessário que nós próprios nos tomemos produtores e reprodutores de nossos filhos. Somos, portanto, produtos e produtores no processo da vida, isto é o princípio da causalidade retroativa.
Produzimos a sociedade que nos produz. Ao mesmo tempo, não devemos esquecer que somos não só uma pequena parte de um todo, o todo social, mas que esse todo está no interior de nós próprios, ou seja, temos as regras sociais, a linguagem social, a cultura e normas sociais em nosso interior. Segundo este princípio, não só a parte está no todo como o todo está na parte.
O tesouro da humanidade é a sua diversidade. Esta não só é compatível com a unidade fundamental, mas produzida pelas possibilidades do ser humano.
Não devemos esquecer que somos seres trinitários, ou seja, somos triplos em um só. Somos indivíduos, membros de uma espécie biológica chamada Homo Sapiens, e somos, ao mesmo tempo, seres sociais.
É difícil fazer compreender que o "um" pode ser "múltiplo", e que o "múltiplo" é suscetível de unidade.
Compreender a unidade e a diversidade é muito importante hoje, visto estarmos num processo de mundialização que leva a reconhecer a unidade dos problemas para todos os seres humanos onde quer que estejam; ao mesmo tempo, é preciso preservar a riqueza da humanidade, ou seja, a diversidade cultural; vemos, por exemplo, que as diversidades não são só as das nações, mas estão também no interior destas; cada província, cada região, tem a sua singularidade cultural, a qual deve guardar ciosamente.
Damos vida às nossas ideias e, uma vez que lhes damos vida, são elas que indicam o nosso comportamento. Devemos considerar a história humana de maneira complexa. E levar-nos a compreender a incerteza do nosso tempo, visto que não há progresso necessário e inelutável; sabemos que todos os progressos adquiridos podem ser destruídos pelos nossos inimigos mais implacáveis: nós mesmos, dado que hoje a humanidade é a maior inimiga da humanidade. Sabemos, atualmente, que o progresso deve ser regenerado; sabemos ainda que a barbárie constitui uma ameaça, e vivemos mais do que nunca na incerteza, porque ninguém pode adivinhar o que será o dia de amanhã. O nosso destino é, pois, incerto, e ninguém sabe qual o destino do Cosmos.
A nossa situação é extremamente complexa, porque somos, integralmente, filhos do Cosmos e estranhos a esse mesmo Cosmos.
O pensamento complexo conduz-nos a uma série de problemas fundamentais do destino humano, que depende, sobretudo, da nossa capacidade de compreender os nossos problemas essenciais, contextualizando-os, globalizando-os, interligando-os: e da nossa capacidade de enfrentar a incerteza e de encontrar os meios que nos permitam navegar num futuro incerto, erguendo ao alto a nossa coragem e a nossa esperança.
A especialização abstrai, extrai um objeto de seu contexto e de seu conjunto, rejeita os laços e a intercomunicação do objeto com o seu meio, insere-o no compartimento da disciplina, cujas fronteiras quebram arbitrariamente a sistematicidade (a relação de uma parte com o todo) e a multidimensionalidade dos fenômenos, e conduz à abstração matemática, a qual opera uma cisão com o concreto, privilegiando tudo aquilo que é calculável e formalizável.
Eis o problema universal para todo cidadão: como adquirir a possibilidade de articular e organizar as informações sobre o mundo. Em verdade, para articulá-las e organizá-las, necessita-se de uma reforma de pensamento.
O objetivo do pensamento complexo é ao mesmo tempo unir (contextualizar e globalizar) e aceitar o desafio da incerteza.

Princípios do pensamento complexo:
1- Princípio sistêmico ou organizacional: liga o conhecimento das partes ao conhecimento do todo, conforme a ponte indicada por Pascal.
2- Princípio "hologramático" : coloca em evidência o aparente paradoxo dos sistemas complexos, onde não somente a parte está no todo, mas o todo se inscreve na parte.
3- Princípio do anel retroativo: permite o conhecimento dos processos de autorregulação. Rompe com o princípio de causalidade linear: a causa age sobre o efeito, e este sobre a causa.
4- Princípio do anel recursivo: supera a noção de regulação com a de autoprodução e auto-organização. É um anel gerador, no qual os produtos e os efeitos são produtores e causadores do que os produz.
5- Princípio de auto-eco-organização (autonomia/dependência): os seres vivos são auto-organizadores que se autoproduzem incessantemente, e através disso despendem energia para salva- guardar a própria autonomia. Como têm necessidade de extrair energia, informação e organização no próprio meio ambiente, a autonomia deles é inseparável dessa dependência, e torna-se imperativo concebê-los como auto-eco-organizadores.
6- Princípio dialógico: Une dois princípios antagônicos que, devendo excluir um ao outro, são indissociáveis numa mesma realidade. Deve-se conceber uma dialógica ordem/desordem/organização desde o nascimento do universo. A dialógica permite assumir racionalmente a associação de noções contraditórias para conceber um mesmo fenômeno complexo.
7- Princípio da reintrodução: esse princípio opera a restauração do sujeito e ilumina a problemática cognitiva central; da percepção à teoria científica, todo conhecimento é uma reconstrução/tradução por um espírito/cérebro numa certa cultura e num determinado tempo.

Eis alguns dos princípios que guiam os procedimentos cognitivos do pensamento complexo. Não se trata, de um pensamento que expulsa a certeza com a incerteza, a separação com a inseparabilidade, a lógica para autorizar-se todas as transgressões. Consiste, ao contrário, num ir e vir constantes entre certezas e incertezas, entre o elementar e o global, entre o separável e o inseparável. Ela utiliza a lógica clássica e os princípios de identidade, de não-contradição, de dedução, de indução, mas conhece-lhes os limites e sabe que, em certos casos, deve-se transgredi-los. Não se trata portanto de abandonar os princípios de ordem, de separabilidade e de lógica - mas de integrá-los numa concepção mais rica. Não se trata de opor um holismo global vazio ao reducionismo mutilante. Trata-se de repor as partes na totalidade, de articular os princípios de ordem e de desordem, de separação e de união, de autonomia e de dependência, em dialógica (complementares, concorrentes e antagônicos) no universo.
O paradigma da complexidade une enquanto distingue.
O pensamento complexo é, portanto, essencialmente aquele que trata com a incerteza e consegue conceber a organização. Apto a unir, contratualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo a reconhecer o singular, o individual e o concreto.

Por toda parte, se reconhece a necessidade de interdisciplinaridade, esperando o reconhecimento da relevância da transdisciplinaridade, seja para o estudo da saúde, da velhice, da juventude, das cidades... mas a transdisciplinaridade só é uma solução no caso de uma reforma do pensamento. É preciso substituir um pensamento que separa por um pensamento que une, e essa ligação exige a substituição da causalidade uni linear e unidimensional por uma causalidade em círculo e multirreferencial, assim como a troca da rigidez da lógica clássica por uma dialógica capaz de conceber noções ao mesmo tempo complementares e antagônicas; que o conhecimento da integração das partes num todo seja completada pelo reconhecimento da integração do todo no interior das partes.
A reforma do pensamento permitirá frear a regressão democrática que suscita, em todos os campos da política, a expansão da autoridade dos experts, especialistas de todos os tipos, estreitando progressivamente a competência dos cidadãos, condenados à aceitação ignorante das decisões dos pretensos conhecedores, mas de fato praticantes de uma inteligência cega, posto que parcelar e abstrata, evitando a global idade e a contextualização dos problemas. O desenvolvimento de uma democracia cognitiva só é possível numa reorganização do saber, a qual reclama uma reforma do pensamento capaz de permitir não somente a separação para conhecer,mas a ligação do que está separado.
Toda reforma desse tipo suscita um paradoxo: não se pode reformar as instituições sem a reforma anterior das mentes; mas não é possível reformar as mentes sem antes reformar as instituições.

Eis uma impossibilidade lógica, mas é justamente desse tipo de impossibilidade lógica que a vida zomba

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Redefinido Democracia

Edgar Morin cita, certamente concordando, em seu diário "Chorar, Amar, Rir, Compreender", um texto de Nilufer Gole, da Univ de Istambul.
Penso que enriquece o debate sobre o momento político atual no Brasil:
"A própria definição da democracia está prestes a mudar. Se na primeira fase, a democracia era medida por sua capacidade de integrar as diferenças culturais, na segunda, ela se mede por sua capacidade de gerar o multiculturalismo. A democracia significava a uniformização das experiências, das vivências, das línguas, das memórias, por um apelo constante ao princípio da igualdade. Hoje, ela se define cada vez mais por sua capacidade de tolerar as diferenças étnicas, religiosas, sexuais e de reconhecer, portanto, o direito à diferença".
Pergunto: o Brasil tem a maturidade  necessária para adotar essa nova democracia? Tenho minhas dúvidas

segunda-feira, 12 de maio de 2014

"Que regrettez-vous dans votre vie?"

Do que você se arrepende ou lamenta na vida?

Esta foi a pergunta que fizeram a Edgar Morin, numa entrevista em 1995, e essa é parte da resposta, conforme ele relata no diário "Chorar, Amar, Rir, Compreender" (ed SESC, 2012):

"Repenso meus erros políticos, cuja parte mais marcante foi, durante cinco anos, meu erro em relação ao comunismo stalinista. Provêm das mesmas origens que a minha lucidez. Meu julgamento combina, ou melhor, coloca em dialógica o realismo, a posição de princípio e a utopia ou ideal. O realismo conduz ao fatalismo, à aceitação do fato acabado e, além do mais, comporta em si uma falha: a crença de que o estabelecido é durável a longo prazo. Desse modo, em 1940-1941 acreditou-se  (eu pude acreditar) que a hegemonia alemã estava estabelecida por um prazo muito longo, e o realismo, por sua vez, conduziu à resignação e ao erro. De 1941 a 1947, acreditei ser realista esperar que o poder soviético, com o tempo, produziria um socialismo com rosto humano. E, durante um tempo aceitei em silêncio as piores mentiras e as piores ignomínias. Meus princípios conduzem à resistência haja o que houver: é minha posição no final de 1941 contra Vichy [governo francês adesista aos alemães] e a ocupação alemã e, depois, em 1951, contra a URSS stalinista.
A utopia, ou o ideal, consiste em esperar um mundo melhor (mas jamais, no meu caso, o melhor dos mundos). Em si mesma, minha dialógica comportava dificuldade, incerteza, aposta. Não me arrependo daquilo que continua a determinar meu julgamento, ou seja, esta dialógica realismo/princípio/utopia. Posso me arrepender de ter errado? Não, porque a infalibilidade é impossível. Posso lamentar, por minha demora, a cada vez, em me revoltar." (p 27, negrito meu)

quinta-feira, 8 de maio de 2014

#Somos Todos... Não Somos?


Um interessante diálogo ocorre nas redes sociais em função de casos aparentemente desconexos que aconteceram nos últimos dias, especificamente, o caso da banana atirada contra o jogador brasileiro na Europa e o linchamento da mulher no litoral paulista.

A hashtag #somostodos... foi utilizada à exaustão de diferentes formas e até em oposição uma à outra. Pessoas diferentes, mas com a mesma boa intenção, defenderam com veemência tanto o “somos todos” quanto o “sou diferente”.

Inspirado pelo pensamento complexo de Edgar Morin, quero refletir com vocês sobre a realidade de sermos, sim, todos e ao mesmo tempo não sermos.

Não “sermos todos” é bastante óbvio, não é? Desde o fato de nem todos sermos pretos até a certeza de que o linchamento foi obra de alguns ensandecidos, fica claro que fazemos parte de uma diversidade enorme de posições e pensamento. É irreal e mesmo injusto juntar “alhos com bugalhos” e jogar todos na mesma cova do racismo, do ódio e da culpabilidade. Alguns, não só não são culpados como são ativos e participantes da luta contra o racismo, a violência, etc.

Por outro lado, em muitos aspectos “somos todos”, sim. Somos todos responsáveis pela sociedade em que vivemos e por aquilo que nela acontece. E caso alguém pergunte: “Mas o que eu poderia ter feito? Moro a milhares de quilômetros do Guarujá, nunca estive lá, não conheço a mulher morta nem seus linchadores... sempre fui contra a violência, contra a boataria, e apoio o devido processo legal... o que eu poderia ter feito?” A resposta imediata pode ser: “Nada”.

Mas, mesmo quem é um ativista dos direitos humanos deve compreender que se algo assim ocorreu é porque tudo o que foi feito até agora para impedir que algo assim acontecesse foi insuficiente. E, nesse caso, sim, somos todos responsáveis. Devíamos ter feito mais. Muito mais.

E o que precisa atingir o nosso coração agora não é o horror, não é o desânimo, não é a revolta, nem a inercia, o “não estou nem aí”, o “a minha parte eu faço”, “isso é obrigação do governo” (da igreja, do partido, dos outros enfim).

Precisamos é de um sentimento de solidariedade (#somostodosum), de insuficiência (sozinho eu não posso, mas juntos podemos melhorar), de esperança (há de melhorar), de humanidade (reconheço a complexidade dos problemas e o potencial de resolvê-los).

Não me sinto culpado pela banana atirada, nem pela absurda morte de uma inocente. Mas me sinto responsável por não ter feito mais para que coisas assim não existissem e esse sentimento deve me empurrar a agir em favor das respostas, das soluções, da compreensão maior entre os seres humanos, da justiça e da paz.

Só assim valerá a pena continuar vivendo.