sábado, 14 de fevereiro de 2009

Do Mundo Virtual ao Mundo Espiritual

Recebi o texto abaixo da minha amiga Renata. Obrigado! Primeiro verifiquei sua autenticidade e descobri um sáite legal: "Correio da Cidadania". Vale uma visitinha. Depois resolvi transcrever aqui o artigo porque sei que algumas pessoas podem ter dificuldade em navegar por outros sáites. Achei especialmente interessante o paralelo que Frei Betto faz entre catedrais e shopping centers. Confira!


Por Frei Betto

Ao viajar pelo Oriente, mantive con­­tatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, come­didos, recolhidos em paz em seus mantos cor de açafrão. Outro dia, eu obser­vava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de execu­tivos com telefones celulares, preocu­pados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em ca­­sa, mas como a companhia aérea ofe­recia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: "Qual dos dois modelos produz felicidade?"
Encontrei Daniela, 10 anos, no ele­va­dor, às nove da manhã, e perguntei: "Não foi à aula?" Ela respondeu: "Não, tenho aula à tarde". Comemorei: "Que bom, então de manhã você pode brin­car, dormir até mais tarde". "Não", re­trucou ela, "tenho tanta coisa de ma­nhã..." "Que tanta coisa?", perguntei. "Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina", e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: "Que pena, a Daniela não disse: "Tenho aula de meditação!"
Estamos construindo super-ho­mens e supermulheres, totalmente equi­pados, mas emocionalmente infanti­lizados. Por isso as empresas conside­ram agora que, mais importante que o QI, é a IE, a Inteligência Emocional. Não adianta ser um superexecutivo se não se consegue se relacionar com as pes­soas. Ora, como seria importante os currículos escolares incluírem aulas de meditação!
Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem ses­senta acade­mias de ginás­tica e três li­vrarias! Não tenho nada con­­tra malhar o corpo, mas me preo­cu­po com a despro­porção em relação à malha­ção do espírito. Acho ótimo, va­mos todos morrer esbel­tos: "Co­mo es­tava o defun­to?". "Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite!" Mas como fica a questão da sub­je­tividade? Da espiritua­li­dade? Da ociosidade amo­rosa?
Outrora, falava-se em realidade: aná­lise da reali­da­de, inserir-se na realida­de, conhecer a realidade. Hoje, a pa­lavra é virtualidade. Tudo é virtual. Po­de-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega aids, não há envolvimento emocional, controla-se no mouse. Tran­cado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual, entramos na vir­tua­lidade de todos os valores, não há compromisso com o real! É muito grave esse pro­cesso de abstração da lingua­gem, de senti­men­tos: somos místicos vir­tuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por ou­tro lado, pois somos também eti­ca­mente virtuais...
A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do es­pírito. Televisão, no Brasil - com raras e honrosas exceções -, é um problema: a cada semana que passa, temos a sen­sação de que ficamos um pouco me­nos cultos. A palavra hoje é 'entrete­ni­­mento' ; domingo, então, é o dia nacio­nal da imbecilização coletiva. Imbecil o apre­sentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publi­cidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: "Se to­mar este refrigerante, vestir este tê­nis,­ usar esta camisa, comprar este car­­ro, você chega lá!" O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o dese­jo, que acaba precisando de um ana­lis­­ta. Ou de remédios. Quem resiste, au­menta a neurose.
Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma sugestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para den­tro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir! O grande desa­fio é virar o desejo para dentro, gostar de si mes­mo, começar a ver o quan­to é bom ser livre de todo esse condiciona­mento glo­ba­lizante, neo­liberal, con­su­mista.
Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três re­quisitos são indispen­sá­veis: amizades, auto-es­ti­ma, ausência de estres­se.
Há uma lógica reli­giosa no consu­mismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e visita uma pe­quena cidade on­de há uma catedral, deve pro­curar sa­ber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma ca­tedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping cen­ter. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas arqui­tetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domin­gos. E ali den­tro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas...
Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela mu­si­quinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno...
Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald's.. .
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: "Estou apenas fazendo um passeio socrático." Diante de seus olhares espantados, explico: "Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vo­cês o assediavam, ele respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz."

Fonte: Correio da Cidadania - 6 de Junho 2008 (bem no meu aniversário!)

7 comentários:

carmen disse...

Amei este texto, fala de muitas coisas... e todas são fatos!!!

Anônimo disse...

oi Rubinho, fiquei muito contente em vc passar pra frente esse texto tão intenso, assim outras pessoas poderão se deliciar com ele,
tb dei um passeio pelo seu blog, e me diverti bastante, prometo voltar, bjs a todos
Renata

Anônimo disse...

Rubinho,
Frei Beto foi ao ponto. Destaco apenas uma palavra: virtual.
Vc que é meu amigo virtual sabe que não fosse esse mundo artificial jamais teríamos sabido da existência um do outro, eu não teria conhecido os textos que vc escreve e ficaríamos apenas no mundo real. Chato isso.
Abraço forte

Tuco disse...

O monge apresenta a cela ao recém-chegado e lhe diz - se precisar de alguma coisa, me diga, pra que eu possa ensiná-lo a viver sem ela.

O Frei Beto é fera!

Dona Sra. Urtigão disse...

Sou mesmo privilegiada por ter acesso a tudo aqui!
Agradecida!

juberd2008 disse...

Rubens,

Frei Betto escreve com uma lucidez incrível mesmo. Parabéns pela postagem do texto. Ao falar em executivos e monges, me lembrei de ter lido a alguns anos atrás um livro que muito me impressionou: "O apóstolos dos pés sangrentos", falando sobre a vida de Sadur Sudar Sing. Essas leituras não podem nos faltar hoje.

Abraço.

Jacira mavignier disse...
Este comentário foi removido pelo autor.