O texto abaixo é de autoria do colunista João Pereira Coutinho, e foi publicada pelo jornal "Folha de S. Paulo" de 26 de janeiro. Seu título chamou-me a atenção - "Ateus, poetas e messias". Ele publica crônicas escritas entre 13 e 22 de janeiro, abordando temas vários, costurados pelo título. O trecho reproduzido refere-se ao primeiro item do título. Creio que enriquece a reflexão que eu e você fizemos uns dias atrás, não?
"13 de janeiro
A estupidez humana não cessa de me espantar. Leio na imprensa do dia que uma associação "humanista" da Grã-Bretanha lançou em Londres uma campanha pública para defender a provável inexistência de Deus. A ideia foi escrever nos ônibus da cidade duas frases de arrasadora profundidade filosófica: "Deus provavelmente não existe. Por isso, deixa de te preocupar e aproveita a vida".
A tese espanta, não apenas pela infantilidade que a define --mas pela natureza ilógica que a contamina. Se Deus não existe, haverá necessariamente motivos para celebrar?
Os mais radicais "philosophes" do século 18 concordariam que sim. O próprio projeto iluminista, na sua crítica à instituição religiosa como autoritária e obscurantista, defendia que a libertação dos Homens passava pela libertação do divino. Nem todos os "philosophes" eram ateus, é certo: Rousseau ou Diderot, impenitentes "deístas", não são comparáveis a La Mettrie ou Helvétius. Mas o iluminismo continental abriria a primeira brecha na cultura ocidental, ao retirar a Fé do seu trono e ao coroar a deusa Razão.
Foi esse gesto primordial que tornaria possível as devastadoras críticas posteriores do trio maravilha (Feuerbach, Marx e Freud). Deus criou os Homens? Pelo contrário: Deus é uma criação dos Homens por razões várias e todas elas racionalmente explicáveis.
Os Homens criaram Deus por temerem a sua própria mortalidade (Feuerbach). Os Homens criaram Deus por contraposição às condições materiais das suas existências precárias (Marx). Os Homens criaram Deus por puro sentimento de culpa: parricidas arrependidos, eles buscam ainda uma autoridade perdida; Deus é o "fétiche" infantil de quem se recusa a viver uma vida adulta (Freud).
Infelizmente, aparece sempre alguém para estragar a festa. Falo de Doistóievski, claro, disposto a contrariar o otimismo liberal da burguesia russa oitocentista, para quem Deus era um empecilho de modernidade. Pela boca de Karamazov, Dostoiévski formularia a pergunta que Feuerbach, Marx, Freud e também Nietzsche se recusaram a enfrentar: e se a ausência de Deus significa também a ausência de qualquer limite ético para a acção humana?
Essa possibilidade seria confirmada no século seguinte: um século devastado por grandes construções coletivistas, utópicas e rigorosamente ateias que libertaram um fanatismo e uma crueldade indistinguíveis do fanatismo e da crueldade das antigas religiões tradicionais.
Quando os Homens não acreditam em Deus, eles não passam a acreditar em nada; eles acreditam, antes, em qualquer coisa, como dizia profeticamente Chesterton. Antes de festejarmos a provável inexistência do barbudo, convém saber o que essa coisa será."
6 comentários:
O problema, sério problema, é que ao formular toda uma explicaçao bem lógica e amarrada hitoricamente o autor do texto nao percebe que já caiu na armadilha do nosso amigo Richard Dawkins.
A mensagem nos ônibus londrinos é clara, nao é se Deus existe ou nao. O ponto é que Ele teoricamente impediria a pessoa de gozar a vida.
Nisso o autor do artigo escorrega feio, pois Dostoievisk confunde a mensagem moral do evangelho, que talvez tenha tido seu valor na modernidade, hoje porém, na pós modernidade o que vale é a mensagem integral: porque Deus existe, todas as coisas me sao permitidas (até mesmo duvidar de sua existência!). Entao, por que nao aproveitar a vida?
Abrçs,
Roger
Oi Rubinho, para acrescentar azeite na sua massa, convido você e seus leitores a visitar o César Chagas, que explorou esse mesmo tema há um tempinho atrás.
http://estradainfinita.blogspot.com/2008/10/alguns-nibus-de-londres-podero-levar.html
Gente,
O texto que a Bete indicou, do Chagas, é muito bom. Aconselho a leitura.
Rubinho,
como disse ao César: licença, vou curtir a vida.
A gente se encontra pelaí.
Abração
ps:sentindo falta daqueles textinhos falados, sabe?
Opa...
Não tenho certeza se cheguei no blog certo, pois você tem mais de um listados.
Fique absolutamente a vontade para divulgar qualquer coisa do meu blog! Esse é o espírito da blogosfera.
Grande prazer conhecê-lo, ainda que por teclas e telas.
ABraços!
Oi, li aqui, fui lá ver o texto de César, volto. E a minha questão se aproxima à duvida de Pascal.
Mas discordo que a falta de crença em um deus- pessoa implique o fim da ética.Pode alterar paradigmas morais, mas ética está intrínseca ao estado de ser da pessoa humana, a forma e valores com que foi habituada e não obrigatòriamente ligada a cerceamentos de uma dada moral ou a paradigmas religiosos. Haja vista a condição da guerra santa ou justa que é um padrão de algumas religiões monoteistas em determinados momentos históricos. É ético pôr fim à vida , de outro ou a propria? Quantos hedonistas numa dada circunstância e hippies,em outra, por exemplo, recusaram-se a ir a uma dada guerra, alegando questões éticas e que nada tinham com religiosidade.
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